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Morrissey de peito aberto no Coliseu de Lisboa
Todas as fotografias por Nádia Dias
Ele veio. Oito anos depois do último concerto em Portugal, e dois depois do cancelamento de uma actuação em Cascais, Morrissey subiu ao palco do Coliseu de Lisboa, contra as expectativas de muitos. A possibilidade de cancelamento foi motivo de piada desde que o músico anunciou a actuação em extensa carta lamuriosa aos fãs, mas não chegou para afastar a multidão que encheu a sala lisboeta no arranque da digressão de apresentação do álbum «World Peace Is None Of Your Business». Ele veio, de facto, e trouxe tudo: novo álbum, The Smiths, e as causas de sempre: contra a morte de animais pelos humanos, contra a monarquia inglesa, e contra a falecida Margaret Tatcher, ex-primeiro ministro do Reino Unido. A pose e a ironia também chegaram intactas.
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«I find that we live in a world of unprecedented violence (Verifico que vivemos num mundo de violência sem precedentes)». Foi assim que Morrissey, vestido de branco, em frente a uma banda de músicos que ostentavam t-shirts com a expressão «Fuck Harvest», insulto à editora do seu álbum anterior, arrancou o concerto. A reacção foi de euforia, superada na emoção dos primeiros acordes de «The Queen Is Dead», em regresso aos The Smiths. O regresso ao passado foi sempre o mais celebrado, mesmo por quem não o viveu.
O concerto estava marcado para as 21 horas, e em ponto começou o espectáculo, mas não o concerto. Morrissey, chegaria meia-hora depois. Na primeira parte não houve concertos, mas houve música, trazida através de uma sequência de vídeos que começou com Ramones, e passou por New York Dolls – uma das bandas de eleição de Morrissey – Chris Andrews, com «Yesterday Man», ou Nico em «I’m not sayin’». Pelo meio, «The Witch Is Dead» celebrava a morte de Margaret Tatcher, e «The Bullfighter dies», canção pela abolição das touradas do próprio Morrissey, serviu de banda-sonora às imagens de um toureiro a ser varrido por um touro na arena. Em meia-hora de vídeos, ficam assumidas as influências e as intenções (não que estas alguma vez tenham sido escondidas. «Bullfighter Dies» voltou ao palco para ser cantada ao vivo, e serve de exemplo para o tom de «salero» que polvilha «World Peace Is None Of Your Business», e que passa também por «Earth Is The Loneliest Planet».
Morrissey não é homem de subtilezas nas lutas, já se sabe, e confirma-se com a mensagem contra a ex-editora nas vestes da banda, e na forma como apresenta o clássico «Meat Is Murder», em regresso aos The Smiths de 1985. Nos ecrãs de palco, imagens explícitas de sofrimento animal acompanhavam a canção, e foi para os mesmos que Moz se virou de braços abertos durante o instrumental da canção. Para além dos panfletos distribuídos antes do concerto, em que se pedia o fim do consumo de carne, Morrissey deixa a sugestão: «quando estiverem a passear por esta linda cidade comprem uma lata de spray branco e em todos os anúncios do McDonalds que virem escrevam ‘shit, shit, shit, no, no, no’».
Ao longo do concerto, Morrissey suava a camisa e limpava as gotas de suor, sem deixar que o cansaço afectasse a performance vocal, ou a presença carismática em palco, entre poses dramáticas e mãos dadas ao público. Pelo alinhamento e pela sonoridade, não houve grandes surpresas, mas também não cremos que tenha ido muita gente em busca da novidade. Morrissey entregou-se sem ser oferecido, e foi melhor na recta final. Antes de «Meat Is Murder» já «Hand In Glove» – mais The Smiths, desta vez em 1983 – tinha sido cantada de brilho nos olhos por toda a plateia, e depois desta, «One Day Goodbye Will Be Farewell» fechava apropriadamente o concerto antes do encore. Feitas as vénias no regresso ao palco, «Asleep» foi momento maior. As frases «Sing me to sleep, and then leave me alone» eram repetidas em arrepio comum. A última canção só podia ser «First Of The Gang», hino maior da carreira a solo de Morrissey, e termina com o músico a abrir a camisa como se a rasgasse, e a atirá-la para a plateia gerando um motim interminável. Sabemos que Morrissey é directo e que as metáforas nem sempre se lhe aplicam, mas o gesto final de abrir o peito às balas resume-o bem. Ele veio, e anda cá há muitos anos, mas continua a ser refrescante ver alguém ser politicamente incorrecto além das redes sociais.